Nós nos olhamos. Ele rosnou, “canhão, canhão”, tornei a olhá-lo e o batizei: “Corote”
Desde que eu nasci e passei a me entender por gente, não me lembrava que sequer gostava de cachorro. Para não dizer nunca, teve um lá em casa. Um dia, minha irmã caçula ganhou um todo pretinho e que ele não se criou por lá não, ficou mais ou menos uns quinze dias. Ate hoje se me perguntarem como ele sumiu, eu não sei, sumiram com ele.
Foi difícil conter a menina, que chorava todo dia, toda hora, a todo instante. Quase um mês chorando, não se conformava de jeito nenhum com o sumiço.
Nós gostávamos mesmo era de pássaros, galos e galinhas, coelho, pato, pata etc e tal. Tinha um viveiro de uns dois metros. Lá tinha Sabiá, Tiziu, Tico-tico, Sanhaço, Canários da Terra, Trinca-Ferro etc.
Anos atrás eu já estava em situação de rua. Era mês de Junho, Julho e talvez um dos mais frios até hoje. As temperaturas variavam. De dia, não passava de 13°, à noite e madrugada na faixa dos 6° pra baixo.
Numa dessas noites, após jantar, fui dormir. Estava frio demais. Eu ali, umas seis cobertas, bem agasalhado. Tinha um corote pela metade. Dormi demais. Quando acordei, não estava sozinho. Bem entre a parede e minha perna, às 7 horas da manhã, um cachorro.
Nós nos olhamos e ele rosnou “canhão, canhão”. Tornei a olhá-lo, olhei para o corote e o batizei. Ele abanava o rabo, e ficamos amigos.
Era bem ali na subida da Brigadeiro Luis Antonio. Nós, moradores de rua, chamamos ali de Praça Sílvio Santos, pois o SBT era por ali, e éramos ali mais ou menos uns 30 moradores no local. Como o frio todo dia diminuía, eram de dois a três peruas todos os dias para nos levar para os abrigos emergenciais.
Sinceramente, na época eu preferia a rua, o que era uma grande ignorância minha. Eu, que tinha uma saúde boa, não tinha problema nenhum. Só que até hoje conheço muitos que também pode estar chovendo, frio, calor, ou seja lá o que for, não vão para os abrigos.
Essa troca que eu preferia uma cama pelo papelão na rua não foi nada boa para a minha saúde não, eram só problemas .
Nunca tive nada, mas veio a hipertensão, que até hoje, apesar de não ser tão grave assim, não se afasta de mim. Por mais que eu tente, não tem jeito. Para acabar de piorar, não está tendo remédio nas farmácias. Tá ruim mas tá bom.
Voltando ao local onde eu e meu amigo Corote estávamos. Não era Praça Sílvio Santos, como dizíamos eu e meus colegas moradores de rua. O nome correto era – não, é – Praça Pérola Biygtom, ali, bem do lado esquerdo da subida da Brigadeiro Luis Antonio, 683. Tem o Centro de Referência da Saúde da Mulher do outro lado. Ainda tem o Teatro Imprensa, não esquecendo, é claro, da Rua Condessa de São Joaquim, que é onde, de segunda à sexta, tínhamos a deliciosa sopa da Condessa.
Sexta-feira, sábado e domingo eram outras comunidades que iam para lá, só que levavam roupas, marmitex, cobertas.
O CAPE – Centro de Apoio Emergencial fez a limpa. Levou todos para os abrigos. Quem quis ir pra lá, foi. Só restaram três sobreviventes da rua naquele local: eu, o Corote e Sô Antônio, que era do interior de SP, da cidade de Franca. Ele também não gostava de ir para o abrigo. Todos os dias o CAPE ia lá nos buscar mas era perda de tempo.
Não nos faltava nada. A gente usava o banheiro do hospital. Tinha comida para nós todos os dias, inclusive ração para o Corote. Quando um ia tomar banho, que era no Pedroso, o outro tomava conta das coisas: cobertas, papelão, as bolsas que continham as nossas roupas e documentos. Ainda tinha o Corote, que já estava bravo.
Os moradores das imediações, o pessoal do hospital, levavam para nós lanches, roupas, agasalhos, marmitex e não se esqueciam da ração.
Com a saída da maioria dali, ficou bom demais, não tinha problema nenhum. Nada de confusão. Tranquilidade total.
E assim vencemos aqueles dois meses gelados. Sô Antônio pegou suas coisas e disse que iria embora, e foi mesmo.
No outro dia fomos eu e o Corote. Subimos a Brigadeiro Luis Antônio. Assim que chegamos debaixo do Viaduto 13 de Maio, ali tinha uma maloca com aproximadamente uns 4 cachorros, que avistaram o Corote e latiram.
Estávamos do lado direito. A maloca lá do lado esquerdo. Assim que o Corote os avistou foi bonito demais. Atravessou a rua em grande velocidade. Lá entre eles era só alegria.
Continuei meu caminho. Dei uma olhada para trás e vi o Corote. Ele olhava para o alto e latia e pulava, creio eu que agradecendo.
Só voltei ali no mesmo lugar para escrever um pouco sobre a Corrida de São Silvestre 2016. Sequer tinha maloca. Estava tudo limpo.
Acho que se nos encontrarmos um dia, nós iremos nos reconhecer. Mas que foi bom enquanto durou a amizade, foi.
Sem mais,
José Sávio Coelho, “Sô Zé”
*Participante do curso "Comunicando a Rua"