A barbárie está solta. A execução de um catador de material reciclável no dia 12 de julho de 2017 foi mais uma afronta à sociedade que se diz civilizada. Dessa vez, um catador de material reciclável autônomo, morador de rua da região de Pinheiros, bairro nobre da cidade de São Paulo. Ricardo Oliveira dos Santos, negro, pobre, excluído dos direitos de cidadão, odiado por alguns, mas também amigo de muita gente da região, foi executado por um policial militar porque, na versão dos agentes, em posse de um pedaço de pau, teria colocado em risco a vida de policiais armados com armas de fogo. Executado com 3 tiros a queima roupa. Dois deles possivelmente, segundo relatos, após já o terem dominado. Hoje, Ricardo, mas até ontem era tão somente, Negão.
Por pedir uma pizza e por estar com um pedaço de pau na mão, alguém da pizzaria chamou a polícia, não para matar, mas simplesmente para retirá-lo do local ou levá-lo a uma delegacia ou ainda solicitar que ele não ameaçasse as pessoas. Enfim, as possibilidades eram infinitas, menos matar! Por que tanta violência vinda de uma instituição que deveria ter a proteção como sua missão principal?
Mataram, ensacaram o corpo e colocaram numa viatura que saiu às presas, não por causa do morto, este teve a sua pena de morte decretada, mas por conta da pressão da população que aos gritos de bandidos e assassinos reagiam a tal violência. Os colegas de farda limparam o local, e ainda recolheram as cápsulas das balas assassinas. As únicas que provavelmente vão sofrer alguma punição, ao ficarem presas por muito tempo num saco de plástico.
As testemunhas gravaram vídeos, escreveram nas redes sociais, deram entrevistas. Testemunhas, neste caso, sobraram. Após a situação se acalmar, já a caminho de casa, recebi um chamado dizendo que uma testemunha estava com medo da polícia. Era um morador de rua, amigo do Ricardo, que viu tudo de perto. Estava com receio de ficar na rua com seu cachorro e sua indignação já circulava pelas redes sociais. Gravamos um vídeo com ele na presença dos Ouvidores da Defensoria e das Polícias para deixar registrado seu depoimento. Foi acionado o serviço da prefeitura (protocolo 20471165) para levá-lo a um abrigo. Sua vida também estava em perigo e continua. O que ficamos sabendo pela manhã é que o tal serviço nem apareceu. Aqui estamos de novo tentando um abrigo (público ou municipal) para evitar o abrigo eterno para este amigo.
De volta ao caminho de casa passei novamente na Rua Morato Coelho, próximo ao Pão de Açúcar. A rua estava vazia e as luzes que tentavam iluminar parte da rua e as três cachorras que ficaram ali o tempo todo e testemunharam a morte de seu dono. Agora estavam ali ao lado das carroças cheias de material reciclável que o finado “Negão” encheu. Sem ninguém para puxar, ficariam a noite toda no aguardo de um novo dono. Na solidão daquela rua até parecia que as carroças choravam a morte de seu fiel companheiro.
Valeu Ricardo! Descanse em paz. Aqui vamos continuar lutando pela democracia, por mais igualdade, pela reforma agrária e urbana, pela mudança da polícia, pelas políticas públicas para quem vive em situação de rua e trabalha como catador de material reciclável, por moradias dignas e pela vida. Assim, esperamos que sua morte não caia no esquecimento de tantas que já tombaram como você, injustamente. Ricardo, que você seja semente de um novo tempo. Que possamos todos e todas comermos muitas pizzas e sem balas. Estas sim devem ser enterradas definitivamente. Ricardo, presente!
* Ouvidor Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo