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Feliz aniversário, Jornal O Trecheiro

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     Todas as vezes que eu saía de casa ficava fora de seis a oito meses, e voltava. Os nomes que sempre me davam lá em casa eram “andarilho”, “peão de trecho” ou “trecheiro”.
Não esquentava a cabeça. Parecia que já sabia que um dia não voltaria mais. Quando papai estava vivo era ele que cobrava alguma atitude, visando o futuro. Assim que ele faleceu as cobranças passaram a ser da minha mãe.
     Ela sempre dizia “por que você não fica por aqui e conclua o 2° grau para chegar aonde pretende?”. Sem ele, as coisas ficam difíceis, não ouvi os conselhos dela e fui.
     Não tenho nada a reclamar do trecho. Foram bons e maus momentos. Gostaria que, é claro, fossem apenas os bons, seria muita injustiça ficar aqui com a caneta e o caderno reclamando. Sempre fui um cara exigente comigo mesmo em todos os momentos, ficava na minha, tinha muita facilidade para ver, ouvir e calar: é assim que tem que ser em todos os lugares ou locais por onde passei ou frequentava. Não é que eu tinha medo não. Se tivesse, não era pra estar lá, e sequer passar por perto.
     Sempre fui cobrado nos trechos onde passei, pessoas boas e ruins. Quando não arrumava um emprego que era para ficar alojado, a solução que tinha era ir para um quarto de pensão. O jeito era ficar junto com gente que nunca tinha visto e sequer saber quem era, e ter que ter humildade o suficiente para conviver com elas no ambiente, sempre aqueles que queriam ser os melhores, aí estava o perigo.
     Em quarto de pensão, onde fiquei mais tempo, foi em Ipatinga, MG e Jundiaí, SP. São duas cidades por onde mais passei, e em épocas diferentes. Mais recentemente, antes de vir parar em São Paulo, fiquei em Jundiaí até 2004, quando tive uma lesão, caí e quebrei o fêmur em dois lugares. Foram para mim os piores momentos passados no trecho, apesar de que foram muitos os colegas que apareceram para ficar ao meu lado. Foram três anos em que eu vi e senti o quanto faz falta uma família.
     Até hoje eu não sei quem foi, mas gostaria de saber quais foram as pessoas que fizeram, na época, a doação de seis litros de sangue para que fosse feita a cirurgia. Tive que ficar seis dias internado esperando imobilizado.
     Procurei saber no Hospital São Vicente de Paula quem foram essas pessoas, só de curiosidade, mas me falaram que se não fosse ninguém da família também não me dariam essas informações.
     O importante de tudo isso é que foi uma cirurgia bem sucedida e hoje estou totalmente recuperado.
     Nessas duas cidades, futebol para mim era só fazer, mas em ambas eu tinha percursos de até 22 km para treinar, duas vezes por semana, e outra, eram subidas e descidas, já estava totalmente entregue ao atletismo.
     Quanto ao Jornal O Trecheiro, fui conhecer, a partir do ano 2000, através de um colega do trecho, que me levou até a Rua Dr Penaforte Mendes, no refeitório comunitário. Lá, tomamos o café da manhã, almoçamos e antes o jantar era às 20h30, hoje o horário da janta é a partir das 18h.
     Sempre li as edições do Jornal O Trecheiro, as histórias contadas por nós que estamos em situação de rua são verídicas, seja acontecidas aqui em São Paulo ou em qualquer lugar do Brasil, não nos interessa em nada imaginar algo que passamos ou vivemos.
     São muitos os trecheiros por aí, que fazem longas caminhadas a pé para chegar aqui em SP. Eu não tenho muito o que falar sobre isso, pois nunca fui muito de fazer longas caminhadas.
     As minhas histórias são mais do cotidiano, sobre anos que passei noites de sono em várias ruas e lugares desde que cheguei aqui em São Paulo. Seria eu muito ingrato de reclamar de alguma coisa. Tive assistência médica, alimentação, as comunidades passavam até três vezes durante a noite nas madrugadas, cobertores, lanches, roupas, vagas fixas nos abrigos...
     Atualmente estou num abrigo. Houve épocas em que eu preferia a rua. Nos trechos onde eu passei sempre fui doente por futebol, sou um trecheiro botafoguense. Só que agora, todos nós apaixonados por futebol, ganhamos outro time: eu também sou torcedor da Chapecoense, a estrela que estava solitária no meu coração ganhou cores verdes, “força Chape”.
     A música então nem se fala. O meu rádio sempre dormia ligado, noites e noites na rua ou em quartos onde estava sozinho, sempre procurava rádios que tocam MPB e sambas.
     Não posso deixar de destacar que a música está de luto. Faleceram três mitos da MPB e samba, respectivamente, Mario Sérgio, do Fundo de Quintal – Almir Guineto que foi um dos fundadores do grupo e que ultimamente estava na carreira solo - e Belchior.  Às vezes me lembro de Belchior com essa música: “estava mais alucinado que goleiro na hora do gol”.
     O meu forte mesmo, desde 1984, é, sem dúvida, Almir Guineto. Não sou sambista, apenas curto o samba. Já escrevi uma vez, sou da turma do passinho. Uma das que eu gosto dele é “Insensato destino”.
     Feliz aniversário a esse jornal que acompanha de perto todos nós que estamos em situação de rua.

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